A suspensão de um único e-mail expôs uma grande falha no equilíbrio de poderes globais. O que acontece quando a justiça depende dos servidores de uma corporação — e essa corporação obedece a um governo?
🔧 Big Tech diz ser neutra. Mas a quem elas obedecem?
Quando a Microsoft desativou a conta de e-mail de Karim Khan, promotor do Tribunal Penal Internacional (TPI), em cumprimento a uma ordem executiva da era Trump, uma verdade desconfortável apareceu: a neutralidade corporativa é um mito.
O TPI, encarregado de investigar crimes de guerra e genocídio, ficou sem comunicação não por um ataque cibernético, mas por ação de uma gigante da tecnologia seguindo sanções de Washington.
E não foi um caso isolado. Empresas estadunidenses, obrigadas por lei, têm cortado serviços a entidades na lista negra do governo — de acadêmicos iranianos a bancos russos.
Em 2019, o GitHub restringiu o acesso a usuários no Irã, Síria e Crimeia devido a sanções dos EUA. Como resultado, acadêmicos iranianos perderam acesso a repositórios de código e projetos de pesquisa hospedados na plataforma.
As redes de ensino online Coursera e edX suspenderam o acesso a cursos para pessoas no Irã, mesmo para conteúdo gratuito, com base nas restrições do Office of Foreign Assets Control (OFAC) dos EUA.
Após a invasão da Ucrânia, várias instituições financeiras russas foram desconectadas do sistema SWIFT e tiveram cartões Visa/Mastercard bloqueados por decisão das empresas sediadas nos EUA.
A mensagem é clara: o software é global, mas a obediência é local.
🎯 Infraestrutura virou munição
O domínio digital virou o novo campo de batalha da influência geopolítica. Antes, nações bloqueavam portos ou cortavam suprimento de petróleo. Agora, usam o acesso à tecnologia como arma. O caso do TPI é um exemplo: ao negar o e-mail de Khan, os EUA não sancionaram apenas um indivíduo, mas comprometeram o funcionamento de uma instituição.
Isso faz parte de uma “Guerra Fria tecnológica”, onde serviços em nuvem, redes sociais e provedores de e-mail se tornam instrumentos de poder estatal. Casper Klynge, ex-diplomata da UE, chama o caso de “arma do crime” que a Europa temia — prova de que o domínio estadunidense na tecnologia equivale a poder político.
⚖️ O tribunal que julga crimes de guerra… sem e-mail
A decisão do TPI de recorrer ao ProtonMail, um serviço criptografado suíço, escancara uma vulnerabilidade incômoda e pouco discutida. Se até um tribunal internacional — apoiado por 123 países — pode ser paralisado digitalmente, o que isso diz sobre regiões menores, ativistas ou jornalistas?
Como uma instituição pode funcionar com autonomia se toda sua estrutura digital depende de empresas de fora? Bart Groothuis, especialista em cibersegurança e deputado europeu, afirma que a Europa precisa “fazer mais por sua soberania”.
🇧🇪 Europa quer sua própria nuvem — e já começou a construir
O estado alemão de Schleswig-Holstein está abandonando o Microsoft Office. A Dinamarca testa alternativas. Também é possível citar o Gaia‑X, ecossistema europeu federado que busca padronizar infraestrutura de dados, conectando várias nuvens sob controle europeu.
Além disso, a União Europeia planeja investimentos bilionários em IA e computação em nuvem para reduzir a dependência de gigantes estadunidenses. Mas o desafio é grande. Amazon, Google e Microsoft dominam 70% do mercado de nuvem na Europa. Sendo assim, criar alternativas é sobre reescrever as regras do poder digital.
🔥 E se o promotor estivesse investigando a Rússia ou a China?
Eis a pergunta desconfortável: a Microsoft teria agido da mesma forma se o TPI estivesse investigando um adversário dos EUA? A aplicação seletiva de sanções mostra dois pesos e duas medidas — um cenário em que as big techs se tornam juízes da justiça geopolítica.
Como disse Andy Yen, CEO do Proton: “A situação é insustentável.” Se instituições como o TPI não conseguem garantir sua própria comunicação, como podem responsabilizar os poderosos? A crise real não é apenas sobre acesso a e-mails — é sobre se a tecnologia está acima da justiça.
Fonte:NYT
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